EM CASOS EXCEPCIONAIS É POSSÍVEL A RETENÇÃO DO PASSAPORTE DO DEVEDOR INADIMPLENTE NAS AÇÕES DE EXECUÇÃO CIVIL

    EM CASOS EXCEPCIONAIS É POSSÍVEL A RETENÇÃO DO PASSAPORTE DO DEVEDOR INADIMPLENTE NAS AÇÕES DE EXECUÇÃO CIVIL.

 

Há mais de dois anos em vigor o Código de Processo Civil de  2015 trouxe uma série de modificações e novidades nas normas processuais. Dentre as principais inovações pode-se apontar a norma prevista no art.139, IV, a qual possibilita ao magistrado “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”. A partir de então gerou-se um debate em âmbito doutrinário e jurisprudencial acerca dos limites e possibilidades na aplicação destas medidas atípicas. Dentre outras medidas utilizadas pelo magistrado se destacam a apreensão dos passaportes e da CNH dos motoristas.  Neste escrito se analisará a possibilidade e a legalidade da apreensão dos passaportes dos devedores, desenvolvendo o raciocínio a partir do entendimento proferido pelo STJ no julgamento do RHC 97876-SP de relatoria do eminente Ministro Luis Felipe Salomão.

O acórdão do RHC 97876-SP  está assim ementado:

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. MEDIDAS COERCITIVAS ATÍPICAS. CPC/2015. INTERPRETAÇÃO CONSENTÂNEA COM O ORDENAMENTO CONSTITUCIONAL. SUBSIDIARIEDADE, NECESSIDADE, ADEQUAÇÃO E PROPORCIONALIDADE. RETENÇÃO DE PASSAPORTE. COAÇÃO ILEGAL. CONCESSÃO DA ORDEM. SUSPENSÃO DA CNH. NÃO CONHECIMENTO.

1. O habeas corpus é instrumento de previsão constitucional vocacionado à tutela da liberdade de locomoção, de utilização excepcional, orientado para o enfrentamento das hipóteses em que se vislumbra manifesta ilegalidade ou abuso nas decisões judiciais.

2. Nos termos da jurisprudência do STJ, o acautelamento de passaporte é medida que limita a liberdade de locomoção, que pode, no caso concreto, significar constrangimento ilegal e arbitrário, sendo o habeas corpus via processual adequada para essa análise.

3. O CPC de 2015, em homenagem ao princípio do resultado na execução, inovou o ordenamento jurídico com a previsão, em seu art.139, IV, de medidas executivas atípicas, tendentes à satisfação da obrigação exequenda, inclusive as de pagar quantia certa.

4. As modernas regras de processo, no entanto, ainda respaldadas pela busca da efetividade jurisdicional, em nenhuma circunstância, poderão se distanciar dos ditames constitucionais, apenas sendo possível a implementação de comandos não discricionários ou que restrinjam direitos individuais de forma razoável.

5. Assim, no caso concreto, após esgotados todos os meios típicos de satisfação da dívida, para assegurar o cumprimento de ordem judicial, deve o magistrado eleger medida que seja necessária, lógica e proporcional. Não sendo adequada e necessária, ainda que sob o escudo da busca pela efetivação das decisões judiciais, será contrária à ordem jurídica.

6. Nesse sentido, para que o julgador se utilize de meios executivos atípicos, a decisão deve ser fundamentada e sujeita ao contraditório, demonstrando-se a excepcionalidade da medida adotada em razão da ineficácia dos meios executivos típicos, sob pena de configurar-se como sanção processual.

7. A adoção de medidas de incursão na esfera de direitos do executado, notadamente direitos fundamentais, carecerá de legitimidade e configurar-se-á coação reprovável, sempre que vazia de respaldo constitucional ou previsão legal e à medida em que não se justificar em defesa de outro direito fundamental.

8. A liberdade de locomoção é a primeira de todas as liberdades, sendo condição de quase todas as demais. Consiste em poder o indivíduo deslocar-se de um lugar para outro, ou permanecer cá ou lá, segundo lhe convenha ou bem lhe pareça, compreendendo todas as possíveis manifestações da liberdade de ir e vir.

9. Revela-se ilegal e arbitrária a medida coercitiva de suspensão do passaporte proferida no bojo de execução por título extrajudicial (duplicata de prestação de serviço), por restringir direito fundamental de ir e vir de forma desproporcional e não razoável. Não tendo sido demonstrado o esgotamento dos meios tradicionais de satisfação, a medida não se comprova necessária.

10. O reconhecimento da ilegalidade da medida consistente na apreensão do passaporte do paciente, na hipótese em apreço, não tem qualquer pretensão em afirmar a impossibilidade dessa providência coercitiva em outros casos e de maneira genérica. A medida poderá eventualmente ser utilizada, desde que obedecido o contraditório e fundamentada e adequada a decisão, verificada também a proporcionalidade da providência.

11. A jurisprudência desta Corte Superior é no sentido de que a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação não configura ameaça ao direito de ir e vir do titular, sendo, assim, inadequada a utilização do habeas corpus, impedindo seu conhecimento. É fato que a retenção desse documento tem potencial para causar embaraços consideráveis a qualquer pessoa e, a alguns determinados grupos, ainda de forma mais drástica, caso de profissionais, que tem na condução de veículos, a fonte de sustento. É fato também que, se detectada esta condição particular, no entanto, a possibilidade de impugnação da decisão é certa, todavia por via diversa do habeas corpus, porque sua razão não será a coação ilegal ou arbitrária ao direito de locomoção, mas inadequação de outra natureza.

12. Recurso ordinário parcialmente conhecido.

(RHC 97.876/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 05/06/2018, DJe 09/08/2018. Grifo nosso)

Inicialmente deve-se frisar conforme grifado no tópico 10 da ementa acima transcrita, o entendimento firmado pelo STJ neste acórdão foi de acordo com o caso concreto, não tendo o condão de impossibilitar a medida atípica da apreensão do passaporte do devedor em todos os casos.  Feita essa observação, passemos a analisar o entendimento do STJ.

No caso o STJ se baseou nos seguintes entendimentos para negar a possibilidade de se apreender o passaporte do devedor: (i) a decisão recorrida não foi devidamente fundamentada, explicando a necessidade e a adequação da medida; (ii) não foi respeitado o contraditório, ou seja, o executado não teve a oportunidade de se manifestar acerca da apreensão de seu passaporte; (iii) não foi demonstrada a ineficácia dos meios executivos típicos.

Sendo assim, a partir de um raciocínio lógico do entendimento do STJ, entendo que é possível sim a apreensão do passaporte do devedor como medida atípica, desde que estejam preenchidos alguns requisitos: (i) no caso concreto deve se evidenciar a ineficiência dos meios típicos da execução, ou seja aqueles já previstos em lei; (ii)  que seja aberto prazo para que o executado se manifeste acerca da possibilidade de ser determinada a apreensão do seu passaporte; (iii) a decisão deve ser bem fundamentada, explicando a necessidade e adequação da medida no caso em concreto.

Em conclusão, entendo que uma vez preenchidos os requisitos acima mencionados pode ser sim determinada a apreensão do passaporte do devedor. Contudo, esse é um tema delicado que certamente não será aplicável em todas as execuções e sim mediante análise minuciosa do caso concreto. Em caso de dúvida consulte um advogado da sua confiança.

 

Manoel Victor de Mello